Voltar à Página da edicao n. 401 de 2007-10-09
Jornal Online da UBI, da Covilhã, da Região e do Resto
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> <strong>José Ricardo Carvalheiro</strong><br />

Três reflexões sobre a urbanidade da Covilhã

> José Ricardo Carvalheiro

1. Afastada das grandes rotas de urbanização e circulação do país, a Covilhã foi-se constituindo ao longo de três séculos como “enclave da industrialização” em pleno território de montanha. Um dos seus aspectos matriciais foi a cadência secular com que o estado central marcou a feição socio-económica da cidade. Os grandes, e únicos, equipamentos estruturantes têm-se sucedido em ciclos de cem anos. A fábrica-escola, promovida pelo Conde da Ericeira em 1676, abriu caminho à criação de um centro manufactureiro à escala nacional. A Real Fábrica de Panos, instituída pelo Marquês de Pombal em 1764, aprofundou a especialização económica da cidade. A Escola Industrial Campos Melo, que começou a funcionar em 1884, direccionou-se para apetrechar profissionalmente uma nova era da indústria têxtil. A Universidade da Beira Interior, criada em 1986 (sobre o politécnico da década anterior), respondeu à derrocada dos laníficios com a conversão da economia local ao sector terciário.
Estas âncoras históricas da cidade foram abraçadas pela dinâmica local, multiplicadora de iniciativas, mas sem nunca romper certos limites. Marcada pelo proteccionismo político-económico, a Covilhã ficou acantonada num subsector do têxtil, à semelhança do seu acantonamento geográfico. Como economia, nunca pôde transbordar do perfil de monoactividade e sempre que o proteccionismo se rompeu emergiram as “crises dos lanifícios”. Como cidade, não alcançou dinâmica socio-económica suficiente para agir sobre um território regional alargado, não se tornando centro de trocas nem eixo de circulação de populações.
O processo que inseriu a Covilhã no sistema urbano e económico do país, tornando-a uma cidade, foi o mesmo que a amarrou a um carácter demasiado monolítico para configurar um aglomerado de gentes e actividades capaz de gerar dentro de si a acumulação de dinâmicas diversas que é um dos traços definidoras do mundo urbano. Neste sentido, a feição histórica da Covilhã será melhor definida pelo conceito de comunidade, de cidade comunitária, do que pela ideia de cidade urbana. Nos últimos vinte anos vem-se instalando a dúvida se o ensino superior será a nova monoactividade, caso a cidade não se seja capaz de gerar novos sectores com peso significativo.
2. Até às últimas décadas do século XX, a Covilhã preencheu um tecido muito denso e povoado, no espaço exíguo de uma saliência de montanha, suspensa entre dois vales profundos pejados de unidades fabris. Perante um emaranhado de ruas de cariz medieval, Ferreira de Castro descreveu-a, na década de 1940, como “cidadezita serrana, de ruas tortuosas e íngremes”, em redor da qual alguns povoados pastoris se haviam convertido em subúrbios operários. O mundo camponês intermediava o da massificação laboral. Havia um “operariado parcial” entre as leiras e os teares, e havia “de manhã, aquelas filas negras de cardadores, penteadores, fiandeiros, urdideiras e tecelões a avançarem para o trabalho, (...) centenas de negros vultos que desciam da Covilhã” para as fábricas ribeirinhas (A Lã e a Neve, p. 120).
A interposição do fabril com a malha habitacional atingiu tal densidade que a Covilhã foi classificada como “cidade-fábrica”, em contraste com a industrialização difusa que deu forma a muitas zonas do país. Em 1950, existiam 200 fábricas de laníficios com um mais de 30 trabalhadores, além das pequenas unidades e do trabalho doméstico. O quotidiano da cidade ao longo do século XX talhou-se num sobrepovoamento em que as ruas fervilhavam de pessoas sob o ruído incessante dos teares. Mas se este ambiente tem as marcas prototípicas da história da urbanização europeia, a verdade é que ele ficou limitado por uma circunscrição espacial restrita e uma escassez de interacções com outros centros urbanos. E se os últimos vinte anos fundaram um modelo de dispersão territorial que aumenta a mancha urbana, também parecem deitar a perder a densidade e a disseminação de microespaços que constituem uma marca essencial do urbano e da sua potencialidade criadora.
3. Desde finais do século XVII que a chegada de mestres e tecelões de França e Itália, bem como de tecedeiros e tintureiros no fim do século XVIII, indicava um gérmen de carácter citadino. Porque, associada à população aldeã atraída pelo trabalho fabril, representava a possibilidade de fazer confluir grupos diversos para um espaço comum, traço fundamental do mundo urbano e das suas dinâmicas culturais.
Este processo, porém, acabou por resultar numa população com perfil socio-profissional altamente homogéneo, dada a predominância esmagadora e prolongada do operariado industrial, cujo contraponto era a minoria de proprietários fabris. Não foi só pelo desenho de urbe fabril encavalitada na montanha que a Covilhã adquiriu uma certa visibilidade e configuração única no país, foi também pela identidade colectiva que se forjou num caldo de cultura e privações materiais que favoreciam a revolta popular.
Destinado a conter potenciais insurreições operárias, um regimento de infantaria instalou-se na antiga Fábrica Real, em 1884. Nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, em vários momentos houve apedrejamentos a residências de industriais, sinalizando pontos paroxísticos de um profundo antagonismo social. Durante as greves de 1912, três mil operários tentaram invadir o teatro onde decorria um espectáculo, com “vivas à anarquia e ao saque” de tal modo que o administrador do concelho equacionou entregar o governo da cidade à autoridade militar.
O perfil sociológico da cidade, não só dicotómico como profundamente cavado, manteve-se inabalado até à década de 1980 (quando o proletariado ainda representava 80% da população activa), instituindo um mundo de ricos e pobres. A longa ausência de classes médias, habituais amortecedoras de tensões pelo efeito de gradação na estrutura de classes, simbolizava a impossível mobilidade ascendente para as famílias populares. Mas também significava uma baixa pluralidade socio-profissional e pouca complexidade cultural, contrariamente ao que é apanágio do urbano como mosaico cujo principal traço é “a soma das suas partes”.
A formação de “partes” que se somem é um processo em curso nas duas últimas décadas, com a expansão do sector de serviços, a qualificação escolar de segmentos crescentes da população e a maior integração da Covilhã num sistema urbano nacional de circulação de pessoas e bens. Em vinte anos, a estrutura de classes alterou-se substancialmente no sentido de uma maior segmentação e diversificação de grupos sociais, mas será possível impedir que os segmentos mais criativos sejam transitórios, em busca de outros graus de urbanidade?


Data de publicação: 2007-10-09 00:00:00
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