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«DEMOCRACIA»
António Bento · quarta, 14 de maio de 2014 · UBI
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21951 visitas Correndo o risco de uma certa aridez na exposição, para a qual se pede a benevolência do leitor, observe-se a ambiguidade do conceito e analise-se a impropriedade do termo «democracia». A «democracia» tanto é uma forma de constituição do corpo político como é uma técnica de governo. Com efeito, parece que o sistema político ocidental, a que por razões diversas gostamos de chamar «democracia», resulta da fusão de dois elementos heterogéneos que se legitimam e se reforçam mutuamente: uma racionalidade político-jurídica e uma racionalidade económico-governamental, uma «forma de constituição» e uma «forma de governo». Na verdade, a semântica do conceito tanto é absorvida pelo direito público como remete para uma prática administrativa. Com a «democracia» tanto se designa uma forma de legitimação do poder como as modalidades materiais e efectivas do seu exercício. Contudo, a dimensão jurídico-política, por um lado, e a dimensão económico-administrativa, por outro, cindem – por assim dizer irremediavelmente – o conceito. Na discussão pública que as nossas sociedades mantêm sobre o conceito prevalece hoje a interrogação da dimensão económico-governamental da democracia. As razões por que as coisas se passam deste modo não são de fácil nem de rápida explicação. Dir-se-ia que a “vocação” económico-governamental das democracias contemporâneas não é um simples acidente de percurso na crescente financeirização do capitalismo. Como observou algures Giorgio Agamben, ela resulta do facto de o estado de excepção ter alcançado hoje o seu máximo desdobramento planetário. À medida que a instabilidade económica aumenta aritmeticamente, o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises económicas progride geometricamente. O resultado é a instauração permanente de um estado de excepção económico. Dir-se-ia, pois, que entre a racionalidade político-jurídica e a racionalidade económico-governamental não há hoje qualquer articulação possível. A ser assim, então é razoável suspeitar que dessa desarticulação emirja o que alguns chamam o «ingovernável» ou a «ingovernabilidade», que seria ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda a política contemporânea. Seja como for, o problema originário da ambiguidade do conceito e da impropriedade do termo «democracia» formulou-o Aristóteles. Usualmente vertida por «constituição» ou «regime», a politeia de Aristóteles conhece diferentes formas: governo de um, monarquia/tirania; governo de vários, aristocracia/oligarquia; governo de muitos, politeia/democracia. Por este último par é já visível o pouco apreço em que o estagirita tinha a «democracia», a qual, uma vez oposta ao termo geral politeia, faz de algum modo pressupor um desvio ou perversão da constitucionalidade. Com efeito, o primeiro termo de cada par é o correcto; o segundo o respectivo desvio ou perversão (parekbaseis). Tal como a «tirania» é o governo centrado apenas no interesse do monarca e a «oligarquia» o governo centrado apenas no interesse dos ricos (aristoi são os melhores, não necessariamente os mais ricos), assim também a «democracia» é o governo centrado apenas no interesse dos pobres. Qualquer destas formas é perversa ou transviada porque em cada uma falta a busca equilibrada do bem-estar da comunidade. De uma maneira ou de outra, em qualquer discussão travada nas línguas vernaculares do Ocidente a politeia de Aristóteles é sempre traduzida e entendida quer como «constituição», quer como «governo». Esta ambiguidade, porém, é anotada por Aristóteles na Política do seguinte modo: «Porque politeia e politeuma significam a mesma coisa, e porque politeuma é o poder supremo (kyrion) das cidades, é necessário que o poder supremo seja de um só, de alguns, ou de muitos». As traduções desta passagem restituem politeia quer por «constituição», quer por «regime», vertendo politeuma invariavelmente por «governo». Neste passo, alguns comentadores da Política entendem que Aristóteles terá tentado resolver a anfibologia do conceito precisamente através do recurso à figura do kyrion. Se, porém, entendermos a politeia como actividade política e politeuma como a coisa política que resulta dessa actividade, talvez a separação e a tensão introduzidas entre «constituição» e «governo» fique um pouco, por assim dizer, amenizada ou “suspensa”. Assim, se porventura quiséssemos introduzir a terminologia moderna – democrática e revolucionária – na discussão, politeia seria o «poder constituinte» e politeuma o «poder constituído», sendo que ambas as faces da democracia e da política que dela resulta são mantidas juntas sob a forma de um poder soberano (kyrion) do povo. Foi este problema que Michel Foucault sublinhou na obra de J. J. Rousseau: como conciliar uma terminologia «jurídico-constitucional» («contrato», «vontade geral», «soberania») com uma «arte do governo». Com efeito, Rousseau tentou distinguir e articular «soberania» e «governo». No artigo Economia Política, Rousseau procurou distinguir entre o que ele chama «governo», ou «economia pública», e «soberania», ou «autoridade suprema». O cúmulo desta distinção é que ao «governo» ou «economia pública» cabe o «poder executivo», e à «soberania» o «direito legislativo». Facto curioso, um pouco como em Aristóteles, em Rousseau a «soberania» (kyrion) é ao mesmo tempo um dos termos da distinção e o que liga num nó indissolúvel «constituição» e «governo». Cabe agora perguntar: por que razão a politeia se encontra capturada nesta ambiguidade? Que consequências isso traz à «democracia»? O que confere ao soberano o poder de assegurar e de garantir a união legítima ou a proporção correcta entre «constituição» e «governo»? Tendemos hoje a pensar que assistimos a um domínio esmagador do «governo» e da «economia» sobre uma «soberania» popular que foi progressivamente esvaziada de todo o sentido e que perdeu quer o conteúdo, quer a forma. Mas o maior dos equívocos e simplificações do debate contemporâneo em torno da «democracia» talvez seja o que alimenta a concepção do «governo» como simples «poder executivo». Toda uma discussão consideravelmente por fazer. |
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