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Jorge Bacelar


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As bundas ditosas
ou de como a censura (às vezes) ajuda a vender

O assunto tem a ver com o boicote decretado pelas (pelo menos duas) grandes superfícies ao último livro de João Ubaldo Ribeiro, A casa dos budas ditosos. Apesar de ser apresentado um argumento pouco convincente - o teor pornográfico da obra - até poderíamos encolher os ombros: o merceeiro é que decide a mercadoria que quer ter à venda. Mas se atendermos ao argumento/justificação que apresentaram, a coisa fica esquisita.
Dei-me ao trabalho de inspeccionar algumas secções de uma loja de uma dessas cadeias de distribuição e, coisa estranha, A casa dos budas ditosos conforme prometido, não estava, mas em contrapartida, mesmo ao alcance das mãozinhas das criancinhas (que queremos a todo o transe proteger destas badalhoquices) tínhamos o Guia Astrológico do Sexo (com bonecos e tudo); mais à frente, a Cosmopolitan anunciava Beijos Tórridos, enquanto a sua colega Mulher Moderna remetia os leitores para A Hora do Orgasmo - modos de obter prazer sem limites.
Um pouco ao lado, no sector de TV-HiFi-Vídeo, entre as cassetes do Oliver Twist, da Mulan, do Harrison Ford e do Hitchcock, encontrei títulos absolutamente edificantes (diria mais: pedagógicos) como Amantes Caninos, patrocinado pela Sociedade Protectora dos Animais e Liga dos Amigos do Cão da Serra da Estrela, Maluquinha na Cama e A Glutona Obsessiva, incidindo sobre os graves e actuais problemas da psiquiatria asilar assim como as chagas sociais causadas pela anorexia e bulimia.
Para aprofundar questões nacionais temos ao nosso dispor Portuguesinhas I e Fim-de-Semana Lusitano; querendo ir mais fundo, temos Portuguesinhas II, cuja sinopse nos esclarece que as jovens mais escaldantes deste país estão de volta... agora elas querem mais, muito mais! Outros títulos igualmente profundos: O Cadilac Tarado, ensaio sobre psicanálise e motores de combustão, A Bunda de Ipanema, ensaio documental sobre o outro lado do Brasil contemporâneo, Sofreguidão Anal, documentário sobre supositórios e programas de alimentação alternativa.
Se quis ler A casa dos budas ditosos, tive de ir procurar a um Sex-shop muito especializado (no caso foi a Livraria Almedina em Coimbra, mas já soube que na Bertrand e na Fnac também há - escondidos atrás do balcão...).
É mesmo pornográfico: basta atentar nas passagens sobre Freud , Shakespeare, Lacan, Sócrates ou Goethe. Nojento.
De facto, é de louvar a iniciativa censória dos hipermercados. Vamos todos visionar a Sofreguidão Anal (para o qual acho justa uma nomeação para o Óscar Para o/a Melhor Contorcionista) e Amantes Caninos, que deixam o Rin-Tin-Tim, a Lassie, o Milou e os 101 dálmatas num chinelo. Se se interessa pela realidade brasileira, não perca A Bunda de Ipanema. Para ler, recomendo The Playboy Book e The Playmate Book, dois sumptuosos volumes (com figuras) nos quais ficaremos a conhecer o percurso de um dos mais sérios editores contemporâneos, permanentemente debruçado sobre os mais candentes temas e dramas sociais. (Estes livros estão mesmo ao lado do Erotica Universalis e 1000 Nudes, da Taschen, assim como do Guia Astrológico do Sexo, já referenciado).
Para quem já anda na cena do multimédia, sugiro igualmente Extreme Sex, Gang Bangs ou Anal Delights (estes títulos encontram-se na mesma prateleira que Tomb Raider III, As Aventuras do Hugo - Apitó Comboio, Diciopédia, Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, e Curso Interactivo de Microsoft Office).
Para terminar, sugiro um pequeno jogo de leitura comparativa, em que apresentarei excertos dessa abjecta obra de João Ubaldo Ribeiro e de uma pérola da literatura séria, O Anatomista, de Federico Andahazi, editado pela Presença, e que, ironicamente adquiri nessa grande mercearia onde fiz esta pesquisa:

1 - "(...) e mandou chamar o clérigo para que lhe desse os primeiros sacramentos porque - naturalmente - uma boa puta devia ser cristã. Como tantas outras vezes, Donna Sidonna negociou o preço dos serviços com o clérigo e acordaram no pagamento: o cura exigia o favor de uma das pupilas todos os dias durante um mês e "per tutte le orifici". Donna Sidonna oferecia o serviço apenas por uma semana e não incluía outro favor além da tradicional francescana. Finalmente acordaram em que o clérigo receberia os serviços duma pupila durante quinze dias e "per tutte le orifici". Nesse dia a pequena foi baptizada e Donna Sidonna deu-lhe o nome de Ninna."

2 - "Quer dizer, a maior parte não dava propriamente, pela razão de sempre, a necessidade de permanecer tecnicamente virgem, mas dava, em última análise. Até hoje me espanta essa himenolatria. Era a honra da mulher, que horror. Ainda existe, sabia? E existe aos montes, é de cair o queixo (...). Pittigrilli, um escritor que hoje ninguém lê, mas andava em voga e de que as moçoilas não podiam nem chegar perto (...) dizia mais ou menos que, em vez de se preocuparem tanto com a integridade dessa honra, melhor fariam as mulheres italianas em lavá-la, com água mesmo e não com sangue, pelo menos uma vez por dia. E, de fato, é triste, acho que como ele próprio ainda disse, viver numa sociedade em que a honra feminina é portada entre as pernas, que coisa mais besta, meu Deus do céu. (...) Quantas vidas se perderam, quantos destinos se estragaram, quantas tragédias não houve, quantos conventos não foram abarrotados desumanamente, por causa da honra de tantas e tantas infelizes?"

3 - "E as pessoas lêem romances, biografias, confissões e memórias porque querem saber se as outras pessoas são como elas. Não somente por isso, mas muito por isso. Querem saber se aquilo de vergonhoso que sentem é também sentido por outros, querem olhar mesmo pelo buraco da fechadura e, quanto mais olham, mais precisam olhar, nunca estarão saciadas. Faz bem, é reconfortante. Porque eu tenho a convicção que a maior parte das mulheres e homens é como eu e pensa que não, cada um pensa que é único em suas maluquices. Não é, não, somos todos iguais. Vai ter muita gente que vai ler isso e vai discordar e de novo estou com preguiça de argumentar. Largue este texto, então, não perca seu tempo. Não largou? Não largou, claro, chegou até aqui."

4 - "(...) ficava il bordello dil Fauno Rosso, a casa de putas mais cara de Veneza (...) segundo constava do catalogo di tutte le puttane del bordello com il lor prezzo, o seu nome [Mona Sofia] aparecia impresso em letras destacadas, acompanhado do preço, em números ainda mais notáveis: dez ducados (...). O catálogo, de muy prolixa feição, editado para viajantes selectos, nada dizia naturalmente dos seus olhos verdes como esmeraldas, nem dos seus mamilos duros como amêndoas, (...). Nada dizia das suas coxas firmes de animal, torneadas como a madeira, nem da sua voz de lenha a arder. Nada dizia das suas mãos, tão pequenas que pareciam não abarcar o diâmetro de uma verga, nem da sua minúscula boca em cuja cavidade se diria impossível acolher o volume de uma glande entumecida. Nada dizia do seu talento de puta, capaz de levantar um morto."

5 - "(...) e depois roçava na bunda dele, ele adorava, embora fosse machíssimo como todo português, inclusive os veados - paneleiros, para ficar com a usança portuguesa e emprestar alguma cor local à narrativa -, os paneleiros que se juntam nos arredores do Campo Pequeno, onde se fazem ash curridash d'toirosh em L'shboa e vão trabalhar como forcados, que são uma espécie de veados parrudos que vão enfrentar os touros no peito. Em fila, trenzinho, um encostando a bunda no de trás, naturalmente. (...) Vi muitas belas bundas em Portugal, que lá não são chamadas bundas, mas de cu mesmo, que lá nem é palavrão, veja como são as coisas, grande país subestimado."

Solução:
1 - O Anatomista, p. 50
2 - A casa dos budas ditosos, pp.41-42.
3 - A casa dos budas ditosos, p. 132
4 - O Anatomista, pp. 17-18
5 - A casa dos budas ditosos, pp. 44-45

0 ou 1 respostas certas: Leia os dois livros e depois torne a jogar.
2 ou 3 respostas certas: Leu pelo menos um dos livros, mas já estava meio esquecido(a).
4 ou 5 respostas certas: Batota! Já tinha lido os dois, hã? Confesse!


Declaração final (e formal): nem as Publicações Dom Quixote, nem a Editorial Presença, nem o João Ubaldo Ribeiro me encomendaram o sermão.
Boas leituras.

 

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