.


.

 


João Correia


O estranho mundo dos
media

A questão põe-se nestes termos: será que se justifica a existência de um serviço público de televisão numa altura em que tudo parece mudar no panorama dos media, verificando-se que a RTP se revela incapaz de ganhar eficácia egarantir padrões mínimos de qualidade, para além daqueles que resultam de uma RTP2 imoderadamente elitista ?
Gostaria de começar por aqui: sou dos que penso que não podem ser nem o Estado nem os anunciantes e programadores de meios das agências publicitárias que devem decidir o que é mais importante para cada um de nós em cada momento: essa é a nossa escolha. Infelizmente, as nossas escolhas estão longe de ser sempre livres ou racionais. São simplesmente humanas e ditadas pelas circunstâncias. O grande problema das discussões entre adversários e partidários do serviço público é que quase sempre estão contaminadas por dicotomias rígidas, argumentos unilaterais e generalizações reducionistas, servidas com o peso de uma argumentação gongórica. Infelizmente, os intelectuais, os académicos e os jornalistas não são imunes a esta tendência aparente simplificadora que muitos julgam exclusiva dos adeptos do Benfica e do Porto. Passemos os olhos por alguns exemplos que demonstram que a discussão está inquinada

2. Para os defensores do serviço público, as televisões comerciais são intrinsecamente niveladoras do gosto, limitando-se a visar o lucro fácil. Para os adversários do serviço público, qualquer proposta no sentido de garantir o acesso das várias correntes de gosto ao espaço público dos media é uma atitude elitista, que visa impedir os espectadores de fazerem uma escolha livre a qual se manifesta, apenas, através do mercado.
Esquecem os defensores do serviço público que este generalizou muitas das vezes uma informação cinzenta e governamentalizada e uma programação que acolhia o paternalismo cultural dos burocratas que, em muitos casos, gravitam, ao seu redor. Esquecem os adversários do serviço público que nem todos os gostos privados são legítimos, apenas pelo facto de suscitarem a adesão da maioria.
Para os adversários do serviço público, o único critério que vale é o nível das audiências, pois, em democracia, devem ser as maiorias a decidir. Respondem os defensores do serviço público que muitos dos programas veiculados pelos mass media são objecto de um consumo passivo que não assegura a verdadeira escolha. Fingem os primeiros ignorar o facto de que as escolhas regidas pelo livre jogo das forças de mercado também não são absolutamente livres. Desde logo, não são os cidadãos nem os consumidores que ditam as grelhas de programação. Há alguns anos atrás, as televisões privadas francesas decidiram começar a incluir nas suas grelhas programas destinados aos "intelectuais elitistas". A razão era simples: é que os "intelectuais elitistas" eram sensíveis à publicidade dos objectos caros que eram comprados nesses programas enquanto as "massas" não faziam corresponder os seus níveis de adesão aos seus níveis de aquisição. Ou seja, as "massas" eram livres para verem mas não eram "livres" (leia-se abonadas) para consumirem .
Esquecem os segundos - defensores do serviço público - que a distinção entre "cidadãos" e "consumidores" é meramente analítica, servindo de referência para atitudes nem sempre fáceis de distinguir. Um consumidor tem direitos, pode defendê-los de modo activo e protestar contra a forma grosseira como eles são objecto de manipulação por parte de publicidade enganosa. Ao invés, um cidadão, no exercício activo da sua cidadania, pode ser motivado por por atitudes irracionais e consumistas.
Finalmente, procura-se reduzir o problema do "serviço público" a um problema de gosto. Os defensores do serviço público seriam elitistas ou iluminados, consoante a apreciação de quem os catalogasse. Os adversários seriam populistas ou sintonizados com os verdadeiros gostos das massas, consoante a claque a que pertencesse o catalogador.Também aqui o bom senso obriga à moderação. Em Portugal, cai-se muitas vezes em duas formas distintas de elitismo: os "consumidores médios" de televisão só gostam de talk shaws, de novelas e de artes marciais. Os intelectuais são todos um bando de chatos e de moralistas que esperam pelas três da manhã para verem um filme cuja fruição plena só é compreensível por eles próprios e mais dois.
Os defensores do Estado acreditam que os intelectuais detestam o entretenimento. Os liberais acreditam, de modo paternalista, que as massas, nunca por nunca, se poderão deleitar com entretenimento inteligente. Ao fim e ao cabo, parecem dizer a mesma coisa.
Por detrás de tudo isto, esconde-se uma outra crença: o que é público, é digno, tem a ver com a cidadania e com a partilha dos grandes valores universais e democráticos. O que é privado é grosseiro, pertence ao universo doméstico e perturba a sensibilidade fina do gosto aceite. Penso que que esta distinção dicotómica serviu para ocultar décadas de dominação. Qualquer que seja a apreciação dos critérios de qualidade da programação comercial das televisões privadas, não se pode ficar indiferente ao facto que as chamadas estórias de rosto humano e os reality-shows, traduzem a chegada a um espaço de visibilidade pública de gostos, gestos e formas de estar que não eram socialmente exibíveis.
Os defesnsores do Serviço Público, muitaas das vezes, apenas podem fundar-se na existência da televisão que temos: mais desgovernamentalizada, é certo do que no tempo do Bloco Central e dos Governos de Maioria Absoluta, mas completamente incapaz de traçar uma estratégia que lhe permita encontrar uma equação equilibrada entre audiências e qualidade. Os que não acreditam no serviço público garantem que o pluralismo será assegurado pela segmentação que as novas tecnologias asseguram, nomeadamente, através do cabo. Esquecem-se que ao aumento dos fluxos, à multiplicidade de alvos tem correspondido uma concentração de meios que pode originar perversões no pluralismo.
Finalmente, creio que não se deve confundir serviço público exclusivamente com propriedade pública. Compreendo, que em Portugal seja necessária a existência de um serviço público, pela enorme desigualdade no acesso á cultura. Não se trata de ser um adepto do paternalismo cultural. Simplesmente compreendo que o direito de escolha supõe uma democratização no acesso a todas as formas de cultura que em Portugal não aconteceu porque passamos do oficialismo surumbático à trivialidade pimba, como passamos, aliás do Estado paternalista à euforia liberal dos anos 80. Nesse sentido, não me perturba o gosto das "massas" pelo entretenimento trivial. O que me perturba é o facto de décadas de défice no domínio da literacia e de analfabetismo não pderem assegurar efectivas condições de igualdade na escolha.
Finalmente, não vejo que o conceito de serviço público tenha que confundir com a propriedade pública de televisão , sobretudo no modelo actualmente existente. Pode haver muitas e diversas formas de se atingir o que se pretende : desde a concessão privada, com a eventual inclusão de apoios indirectos aquelas formas de programação que contribuem para a representação de interesses minoritários e legítimos, passando pela tentativa de garantir espaços plurais - as televisões de acesso público amercanas são um exemplo - sem que a propriedade dos meios ter que ser necessáriamente estatal até à manutenção de um sector público que sirva efectivamente o pluralismo político e se preocupe menos com as questões do gosto, existem muitas outras fórmulas que os especialistas bem conhecem. Nesse sentido, todos os reducionismos, todas as exaltações são prejudiciais a uma discussão serena.






.

 Primeira Ubi  Covilhã  Região  em ORBita  Cultura  Desporto Agenda