Por Rosa Ramos


Uma rede nacional que agora chega à Covilhã

A primeira reunião da Ex-Aequo na Covilhã, a 10 de Janeiro de 2004, foi marcada num espaço público da cidade. Não havia a intenção de ali continuar a realizar os encontros. Menos de 24 horas depois dos primeiros participantes se reunirem, a Rede recebeu um e-mail desse mesmo espaço onde, de forma cordial, era pedido aos responsáveis que tirassem da página de internet da Ex-Aequo o nome do local, nela citado enquanto ponto de encontro. “Fomos discriminados e expulsos de uma forma muito diplomática”, contou ao Urbi o Coordenador da Covilhã, José. “Estávamos apenas a ter uma reunião de convívio num espaço público”, referiu.
Esta dificuldade inicial com que o grupo se deparou é reflexo de uma série de problemas com que têm de lidar diariamente. Posições agressivas e comentários mais ou menos grosseiros e depreciativos constituem o dia-a-dia destes jovens.
A Rede surgiu a partir do projecto “Descentrar”, da Associação ILGA Portugal, e foi apoiada pelo Instituto Português da Juventude (IPJ). Trabalhou-se no sentido de criar grupos de jovens Ex-Aequo em várias cidades do País. O resultado deste projecto que, entretanto, findou em Dezembro de 2003, foi conseguido. A Ex-Aequo marca presença, actualmente, não só na Covilhã, mas também em Aveiro, Braga, Coimbra, Évora, Faro, Leiria, Lisboa, Porto e Vila Real.

Na Covilhã, as reuniões acontecem na AAUBI

Em todos estes pontos do País, os trabalhos decorrem no sentido de reivindicar uma não discriminação das jovens lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros (LGBT). Procura-se, por outro lado, desenvolver e implementar estratégias e acções de intervenção a nível social, político e cultural no que se refere à educação no âmbito da temática LGBT. A Ex-Aequo promove, ainda, reuniões regulares em cada uma das cidades onde funciona, de modo a criar espaços de convívio e de apoio aos seus membros integrantes.
Na Covilhã, o projecto já estava pensado há algum tempo. Não foi posto em prática desde o início porque só existiam, na cidade, dois coordenadores dispostos a dar a cara. Seriam necessários três para que a Rede pudesse existir de forma oficial. Ultrapassado esse problema, a primeira reunião teve lugar. A Rede nacional ia dando indicações de objectivos e estatutos ao grupo fundador da Covilhã. José contou ao Urbi que aconteceram, inclusivamente, formações em Lisboa, onde lhes eram dadas instruções sobre a melhor forma de trabalhar a nível regional.
Ultrapassadas as dificuldades iniciais, hoje o grupo já tem um local fixo, onde se realizam as reuniões. Todos os segundos e quartos sábados do mês, os cerca de quinze elementos da rede reunem-se na sede da Associação Académica da UBI (AAUBI). “Inicialmente, passámos por uma fase extremamente complicada”, conta José, o mesmo que acrescenta que “durante um mês chegámos a estar sem local, porque a AAUBI fechava aos fins-de-semana.”
A existência de um número tão reduzido de elementos prende-se com o facto de muitos jovens terem receio de ser apontados e discriminados. Porém, José garante que o ambiente em que as reuniões são realizadas acontece “com a maior discrição”. O coordenador diz que tem conhecimento de alguns jovens que não aderem por medo. “No ano passado, realizámos um jantar de Natal e cheguei a receber inúmeros telefonemas de pessoas a dizer que gostavam muito de ir, mas que tinham muito receio de serem reconhecidos e identificados com o grupo. Há uma homofobia interna que as pessoas ainda não conseguiram superar”, explica.




Maioria dos elementos são universitários

CIntegram o grupo covilhanense, na sua maioria, jovens universitários. O limite de idades é justificado por José como uma forma de evitar “conflitos de gerações que poderiam ser nocivos para o trabalho das reuniões”. Em cada uma delas, procura-se abordar temas sempre diferentes e do interesse dos jovens LGBT. A homofobia, a legislação em vigor relacionada com a realidade homossexual, e as formas de lutar para que sejam aprovadas outras leis foram temas já debatidos em grupo. Por outro lado, conversa-se sobre dificuldades mútuas. Fala-se sobre comming-outs (afirmação de um homossexual enquanto tal), sobre relações com a família, adopção, doenças sexualmente transmissíveis. Das reuniões consta, ainda, o apoio de um psicólogo.
“Há muita coragem da nossa parte em manter um grupo assim”, conta José. Até aqui, o António (outro dos três membros Coordenadores na Covilhã, para além de José) tem sido o mais audaz. Chegou a enfrentar os pais. Por ter passado por estas situações complicadas, tem feito muita força de forma a poder lutar contra as dificuldades e o preconceito”.
O preconceito é, aliás, parte integrante da vida destes jovens. A taxa de suicídio em jovens homossexuais apresenta números elevados e a aceitação, mesmo por parte da família e dos amigos, nem sempre é positiva. “Nós nascemos a dizer que o homossexual é uma pessoa promíscua, cheia de doenças e, por natureza, negativa. Mesmo quando se chega à conclusão de que um homossexual é alguém normal, continua a existir uma certa desconfiança”, explica José. Tudo isto leva, na opinião do coordenador, a crises de identidade nos jovens LGBT e a problemas psicológicos graves. “Temos pessoas no grupo que nunca tiveram experiências sexuais aos 28 anos, porque lhes foi interiorizado que o homossexual é um pecador.”

“Quando falo sobre isto, procuro não fazer o discurso do coitadinho”

José assumiu perante si mesmo que era homossexual há quase quatro anos. No início, conta que foi complicado. Posteriormente, veio a entender que “não há problema algum, desde que comece por me aceitar a mim mesmo”. Acredita que a aceitação por parte dos outros advém, em parte, da forma como se fala da sua própria sexualidade. “Quando falo sobre isto, procuro não fazer o discurso vulgar do ‘coitadinho’. Digo, simplesmente, de forma natural”. José acredita que é preciso eliminar muitos mitos que se criaram em torno da homossexualidade. Com os pais, é sempre difícil: “Existe um conjunto de expectativas que se criam em torno da vida dos filhos: acabar o curso, comprar casa, casar, constituir família.”
A Ex-Aequo não conta com qualquer tipo de apoio financeiro. Actualmente, o grupo sustenta-se através das quotas de dois euros anuais, por cada elemento. O IPJ dá apoio, esporadicamente, mas nada de fixo. Em matéria de projectos futuros, José afirma que existem muitas ideias, mas pouco financiamento e nenhumas ajudas. Ainda assim, está a ser pensado o I Ciclo de Cinema LGBT na Covilhã. Um seminário dedicado aos LGBT, familiares e amigos é, também, um desejo de José.
Até lá, as reuniões do grupo prometem continuar, apesar de todas as dificuldades. “Nós não mordemos a ninguém, o nosso único objectivo é ajudar os jovens LGBT, sobretudo a assumir-se para si mesmos. Somos um grupo discreto, ninguém anda com um letreiro na testa a dizer ‘homossexual’”, José faz questão de frisar. “Somos pessoas tão inteligentes como as outras. Na verdade, somos todos iguais. As emoções é que são diferentes”, conclui.



José é um dos coordenadores que dá a cara pela Ex-Aequo da Covilhã



Testemunhos


João, 27 anos

Uma reportagem televisiva juntou João, de 27 anos, à Rede Ex-Aequo. A curiosidade e o desejo de encontrar pessoas com as quais se pudesse identificar mo'tivaram um primeiro contacto. Na primeira reunião, João confessa que estava “numa pilha de nervos”. Porém, não demorou muito tempo até que se sentisse em casa. O convívio e, sobretudo, o facto de ter travado conhecimento com jovens que vivem a mesma realidade que a sua, trouxeram-lhe somente coisas positivas. “É difícil viver-se sozinho. A rede mostrou-me que não há nada de errado em ser homossexual”, conta.
O percurso de João não tem sido fácil. Problemas de auto-estima, isolamento e um ambiente familiar desorganizado e conflituoso fizeram com que, até aos 22 anos, fosse um indivíduo demasiado fechado.
Começou a trabalhar muito cedo, com apenas 15 anos. Durante muito tempo, os dias eram passados no trabalho e em casa, sempre sozinho. “Se há pessoas que se adaptam facilmente ao facto de serem diferentes, outras há que desenvolvem problemas de auto-estima. Foi o meu caso”, lembra. Talvez por ter sido criado num meio rural, não lhe foi fácil entender e aceitar a sua própria diferença.
Por volta dos 10, 12 anos, apercebeu-se de que era, realmente, diferente. “Depois, quando entrei para o 2.º ciclo do Ensino Básico, observava os meus colegas nos balneários e sentia algo dentro de mim”, relembra. Quando questionado acerca de quando teve certezas sobre a sua homossexualidade, João refere apenas que é difícil falar em matéria de idades. “As nossas histórias acabam por ser, na nossa cabeça, como uma bola de neve”, argumenta.
De qualquer modo, e numa fase inicial, teve muitas dificuldades em se aceitar como homossexual, o que fez com que nunca conseguisse gostar de si próprio. João acredita que isso, aos poucos, acabou por destruir a sua relação com as outras pessoas. “Coloquei uma redoma à minha volta e acho que nunca consegui olhar para os outros de forma descontraída.” Talvez por isso, João nunca se tenha conseguido apaixonar.

“Embora me apoie, reconheço que é difícil para a minha mãe lidar com isto”

A partir de determinada altura, e já com 22 anos, começou a olhar-se de forma diferente. Como só tinha o sexto ano, resolveu investir no futuro e começou a estudar à noite. Na escola, conheceu um rapaz por quem se apaixonou “irremediavelmente”. Suspeitando da heterossexualidade do colega, João guardou o seu segredo. De outro modo, certamente estragaria a convivência existente entre os dois. Não lhe é, visivelmente, fácil falar dessa altura.
João considera que o seu percurso tem sido marcado por uma boa dose de preconceito. A mãe conhece os contornos da sua sexualidade e reagiu de forma pacífica. “Eu sou filho único e acredito que ela só quer o meu bem.” O comming-out de João perante a mãe aconteceu com 23 anos, na sucessão de uma reportagem da TVI sobre homossexualidade, a que estavam a assistir em conjunto. João reconhece que é difícil para a mãe lidar com a situação. “De vez em quando ela manda bocas que mostram que há uma certa desilusão da parte dela em relação ao meu percurso. Eu sei que, apesar do apoio que me tem dado, ela queria muito que eu não fosse assim.” João entende que, no geral, é mais difícil à figura paterna lidar com estas questões. Deste modo, esconde a sua sexualidade do pai. Esconde ao máximo, também, das pessoas da terra. “Nestes meios rurais, as pessoas não estão muito informadas sobre a questão. Acaba por ser um pouco estranho para elas”, confessa. De resto, já se afirmou perante alguns amigos. Talvez por serem pessoas chegadas, as reacções foram as melhores. A primeira pessoa a quem contou foi uma amiga de Lisboa, com quem se correspondia há vários anos. João conta que nunca foi apontado na rua. “Tenho o cuidado de esconder isto, mas tenho pena. Era mais fácil se as pessoas entendessem. Uma vez que assim não acontece, tento adaptar-me à realidade para conseguir ser um pouco feliz.”
A dada altura do seu percurso, Carlos namorou com duas raparigas. Confessa que não sabe porque o fez, mas considera que não estava a ser justo com elas e, sobretudo, consigo mesmo. Com a primeira, esteve quinze dias. Com a segunda, dois meses. “Cheguei à conclusão de que eu sou assim e não adianta esconder ou tentar fugir.” Hoje, com 27 anos, João aceita-se tal como é.

Ana, 30 anos

“Tenho pena de não ter nascido num meio maior”

O percurso da Ana não é muito diferente daquele que o João viveu. O isolamento, numa fase inicial, marcou-lhe os passos. Criou, à semelhança do amigo, inúmeras artimanhas para esconder dos outros a sua sexualidade. Já tem trinta anos. As perguntas da família acumulam-se. Gera-se a pressão de não existirem, ainda, perspectivas de casamento.
O apoio, na difícil fase de se assumir perante si mesma, veio-lhe da facilidade em aceder à Internet. O mundo virtual lhe possibilitou, na altura em que a assaltaram as terríveis dúvidas relativas à sua forma de viver a sexualidade, um menor isolamento e uma maior compreensão da sua realidade. Durante muitos meses, pesquisou, tentou interpretar. Mais tarde, percebeu, enquanto frequentava as salas de chat, que não era a única pessoa do mundo a sentir de forma diferente.
Mais de meio ano depois de teclar assiduamente com um grupo fixo de meia dúzia de pessoas, a Ana deslocou-se a Lisboa para lhe ser apresentado o mundo LGBT. Ainda hoje preserva muitas dessas amizades que por lá encontrou, há já quatro anos. Na Internet era-lhe, assumidamente, mais fácil falar das coisas, afinal escondia-se atrás de um nome fictício. Nesse tempo de pesquisa, chegou até à Rede, que só existia a nível nacional. “A Rede, nessa altura, surgiu quase por acréscimo. Tive a sorte de me relacionar com pessoas sérias na net, aprendi e cresci com elas, fui conhecer Lisboa, o Porto, realidades e problemáticas muito semelhantes às minhas.” Envolveu-se com a Ex-Aequo, inicialmente, através da via virtual, nos fóruns. “O ir com o nome fictício permite um maior à vontade para partilhar histórias, ansiedades e angústias. A troca de ideias é fundamental.”
Com 30 anos, Ana acredita que o rol de temas e testemunhos que lhe chegaram pela Internet lhe abriram novas perspectivas, com a vantagem de poder comunicar sem os constrangimentos óbvios do dia-a-dia. Mais tarde, envolveu-se com as pessoas da Rede, na “vida real”. As deslocações aos grandes centros ainda hoje lhe permitem salvaguardar uma certa sanidade. Desloca-se até lá para poder respirar de maneira mais desprendida. Coisa que não pode fazer na Covilhã. Foi criada na periferia da cidade e qualquer deslize pode-lhe ser prejudicial: no trabalho ou perante a família.
Mais tarde, quando o projecto já estava pensado para a Covilhã, perguntaram-lhe se não estaria interessada em envolver-se com a Ex-Aequo local. Ana tinha receio de quem poderia encontrar na reuniões. Tanto podia ser um desconhecido, como o vizinho do lado. Tinha medo, também, de que algum desordeiro a pudesse associar ao nome fictício dos fóruns. “Receava que algum destabilizador pudesse frequentar as reuniões com as piores intenções”, confessa. Porém, a vontade de partilhar preocupações diárias e, sobretudo, a força e o ambiente que encontrou no grupo sobrepuseram-se a qualquer receio. “Eu pensava muito nas pessoas que não tinham acesso à net, por exemplo. No meu caso, foi lá que fui buscar forças, mas muitos jovens vivem, certamente, isolados.”

“Namora há poucos meses com a Susana. O namoro tem-se mantido à distância”

Mesmo assim, nem sempre foi a todas as reuniões. Não era habitual sair durante as tardes dos fins-de-semana e tinha receio de que os pais suspeitassem de alguma coisa. Ainda assim, Ana reconhece a importância da Rede: “É um espaço onde se tenta orientar, através da partilha de testemunhos, ajudar e ouvir as dificuldades alheias que, na maior parte dos casos nos são demasiado familiares.” Embora fosse às reuniões que lhe eram possíveis, quando se tratava de resolver situações que exigiam um maior exposição, a Ana chegava-se atrás.
Apesar destes receios que, afinal, são naturais, a Ana é, aparentemente, mais descontraída que o João. Sempre de sorriso fácil, usa um discurso fluido, rápido e agradável. Em momento algum se mostra insegura ou infeliz com a sua sexualidade. Namora há poucos meses com a Susana. O namoro tem-se mantido à distância, já que esta reside no Porto. Deste modo, muitos dos fins-de-semana da Ana são, agora, passados em viagem. O João acompanha-a. Na verdade, os dois são amigos há mais de quatro anos. Entendem-se na perfeição, aceitam-se, brincam com as dificuldades que vão surgindo e, a pouco e pouco, tornaram-se indispensáveis um ao outro. A complexidade que emanam é surpreendente. Muitas vezes, quando é necessário, servem de alibi um do outro. No próximo fim-de-semana, a Ana irá a casa de Susana. O João também irá e, perante os pais da segunda, representará o papel de namorado de Ana, para que nenhumas suspeitas se possam levantar em torno da relação das duas.
Até ao momento, todas as relações da Ana aconteceram à distância. No início, achava que não existiam outras raparigas em situação semelhante à sua na Covilhã. No entanto, o discurso, ultimamente, mudou.
Apesar de encarar a sua diferença com grande à vontade, tem pena de não ter nascido num meio grande. Sente necessidade, frequentemente, de se deslocar aos grandes centros. É lá que consegue libertar-se e sentir-se em casa. No fim da conversa, confessou que não abdica do seu lado maternal. “Gostava muito de ser mãe”, confessa.