António Fidalgo

Caça à multa


Sete da manhã de um sábado de Setembro. A avenida da cidade, que é também estrada nacional, é larga, tem bom piso, e como qualquer avenida de qualquer outra cidade de Portugal àquela hora num sábado tem pouco movimento. Note-se, sete da manhã de um sábado. O fim de semana começou, a maior parte das pessoas ainda estão na cama, e são poucos os que por razões pessoais ou profissionais conduzem o seu carro. De repente, o condutor casual dessa hora é parado por uma brigada da polícia. Não sopra o balão para verificar se vem de uma longa noite de copos, não é um simples controlo de documentos para verificar se o carro é roubado. Com o veículo imobilizado, o agente pergunta ao condutor: “O Sr condutor sabe que o limite da velocidade dentro da cidade é de 50 Km?” Não é um questionário sobre o código, é apenas uma pergunta retórica para passar uma multa por excesso de velocidade. O sr condutor conduzia a 60 Km e por isso terá de pagar uma multa de 60 euros.

Primeiro dia de aulas, dia de inscrição de caloiros, com os pais vindo de todo o país trazer os filhos à universidade. Estacionamento não há. Arrumam-se os carros da forma possível. Não vem um reboque da polícia retirar os carros que de facto perturbam a circulação de trânsito. Passam-se multas, muitas multas.

A caça à multa é, tentando definir a expressão ao jeito de dicionário, um procedimento da polícia que visa apanhar os infractores às leis ou normas regulamentares com o objectivo primeiro de os multar. Mais do que definir ou explicar de modo preciso o fenómeno de caça à multa, há que compreender a indignação que sente a vítima da caçada.

A caça à multa é uma subversão do espírito da leis. Estas são feitas para servirem o homem, para permitirem uma convivência em comum. Fazer das leis vacas sagradas que em vez de facilitar a vida das pessoas a dificulta é algo iníquo, como é iníquo descontextualizar boas leis e aplicá-las em quaisquer circunstâncias de forma igual. A caça à multa não tem em vista o bem estar dos cidadãos ou a ordem da coisa pública. É um rigorosismo legal que levado à prática por todos os cidadãos tornaria a vida de cada um e de todos um inferno.

Se não houver bom senso na feitura e na aplicação das leis então a convivência social deixa de ser saudável e torna-se um suplício. A diferença de uma sociedade liberal de uma sociedade burocrática está justamente no espírito da aplicação das leis: numa sociedade liberal a polícia procura o bem estar das pessoas, recorrendo para isso à aplicação justa e equilibrada das leis, nas sociedades burocráticas a polícia impõe as leis aos cidadãos a torto e a direito, doa a quem doer, num rigorosismo farisaico, que já o Cristo condenou por achar que as leis foram feitas para as pessoas e não as pessoas para as leis.

Por outro lado, a caça às multas é a pelintrice do Estado. Num país normal chama-se primeiro a atenção de qualquer cidadão para a infracção que está a cometer ou em vias de cometer e procura-se evitar essa infracção. O Estado pelintra esfrega as mãos de contente com as infracções dos seus cidadãos pela simples razão de que assim obtém mais receitas através das multas. Não haverá maior pelintrice política do que olhar para as multas como fonte de receita.