Jornal Online da UBI, da Região e do RestoDirectora: Anabela Gradim |
Duas vidas, uma questão de tempo
Cristiana Borges e Sara Sampaio Alves · quarta, 22 de abril de 2015 · O mesmo concelho, dois adolescentes, ritmos de vida diferentes. Cátia Nave e Vasco Mendes frequentam o ensino secundário na Covilhã. Apesar de terem horários escolares semelhantes, os dois adolescentes vivem de formas opostas, um deles numa luta constante contra o tempo. |
Cátia, de 17 anos estuda a dois passos de casa, Vasco, de 16 viaja três horas diárias para poder ir à escola. |
21986 visitas São seis da manhã. Na Barroca Grande, uma pequena povoação pertencente à freguesia de Aldeia de São Francisco de Assis do concelho da Covilhã, Vasco acaba de acordar. O sol ainda não raiou, no entanto e de olhos ainda meio fechados, Vasco sai da cama e assenta os pés na realidade. Em 40 minutos prepara-se e sai de casa. Às 6h50, depois de andar pouco mais de cem metros a pé, tal como todos os outros dias, entra num autocarro. O destino? Covilhã. Ao todo, 15 paragens, cerca de 50 quilómetros e 1 hora e meia de viagem, o separam da escola onde estuda desde o ano letivo de 2013/2014. Com 15 anos, Vasco viu-se obrigado a mudar de rotinas para poder prosseguir os estudos, sendo que a maior alteração se regista no percurso de casa à escola. No concelho da Covilhã existem três estabelecimentos de Ensino Secundário. Todas elas se localizam na cidade, o que obriga, anualmente, centenas de adolescentes provenientes das 28 escolas básicas do município a deslocarem-se da sua área de residência para concluir o ensino obrigatório. Enquanto Vasco viaja, na Covilhã, Cátia, também ela estudante, continua a dormir. Ao contrário do rapaz de 16 anos, Cátia, com 17, acorda já o sol brilha. O relógio marca 7h30 quando a adolescente se levanta todos os dias. Com calma, uma vez que demora apenas três minutos a chegar à escola, apronta-se e sai de casa. Por volta da hora a que a rapariga, estudante do 12º ano, vai para a escola, Vasco, que frequenta o 11º, chega à Covilhã. Para ambos, as aulas iniciam-se cerca das 8h20, mas apesar de terem horários idênticos, estes dois adolescentes têm ritmos de vida completamente distintos. Corria o ano de 2013, quando o Ministério da Educação decidiu avançar com a criação de 18 mega agrupamentos de escolas, entre os quais um no concelho da Covilhã. Do recente mega agrupamento covilhanense, fazem parte além da escola secundária, 11 escolas básicas, entre as quais a que Vasco frequentou, e ainda seis jardins-de-infância, o que em contas perfaz 1700 jovens e crianças envolvidas. Inicialmente estaria prevista a formação de mais duas grandes junções de escolas, onde se incluíam duas outras secundárias, o que acabou por não acontecer. Na altura, o facto de a decisão ter sido tomada sem o conhecimento formal dos estabelecimentos visados levou professores e encarregados de educação a levantarem uma forte onda de contestação. Além dos docentes e dos pais, que previam grandes transtornos devido à distância de algumas localidades e ao consequente tempo gasto pelos alunos na deslocação, também os diretores das escolas afetas à medida acusaram nesse ano, numa entrevista à Rádio Cova da Beira, o ministério da educação de tratar os alunos como números. Atualmente, apesar de não existirem levantamentos oficiais de dados, estima-se que 30 por cento dos alunos das secundárias da Covilhã sejam “deslocados”. Quando mudou de escola, Vasco sentiu-se “desanimado, pois tinha noção que iria ter de fazer um esforço” e que isso implicaria que lhe restasse pouco tempo para si e “para a família e amigos, pois o pouco período disponível que tinha teria de ser utilizado para estudar”, recorda. Também para a mãe, Anabela Mendes, ver o filho sair de casa ainda de noite e entrar já à noite é algo que a deixa bastante abalada, confessa. Depois de um dia de trabalho e após o toque de saída, Cátia segue para casa, mas Vasco é obrigado a esperar horas pelo transporte para regressar. Cátia chega ao seu local de residência, descansa e desfruta de algumas horas de lazer. Enquanto isso, Vasco permanece na escola, numa luta pela rentabilização do tempo em que espera pelo autocarro que o levará de volta à sua aldeia. Durante o período em que Vasco segue viagem, na Covilhã, Cátia começa a estudar. Consoante as horas a que sai e mesmo com tardes livres, Vasco tem disponíveis apenas dois autocarros que chegam à sua terra a horas tardias. Se por um lado Cátia usa as horas antes de se deitar para estar com a família e por vezes acabar algum trabalho ou estudar para alguma avaliação, a 50 quilómetros de distância, o colega aproveita para colocar o estudo em dia. Às 23h00 tanto para um como para outro, são horas de deitar. Inês Cravino é professora de ensino secundário e também diretora de turma. De acordo com o que observa diariamente, explica que os alunos “que vêm de mais longe acusam mais cansaço”, o que vai de encontro ao que Anabela, mãe de Vasco, atenta em casa. O facto de as escolas secundárias se encontrarem na cidade e de o seu filho, tal como outros adolescentes, terem de fazer vários quilómetros por dia, é algo que não considera positivo. “A partir do meio da semana” nota-se um grande desgaste no jovem, justifica. Tal como esta mãe, outros pais apresentam preocupações semelhantes com os seus filhos. Nas escolas, existe à disposição dos alunos “deslocados” um gabinete de psicologia onde estes podem ter acompanhamento com uma profissional. Por norma, refere Isabel Bessa, psicóloga educativa de uma das secundárias da Covilhã, o seguimento deste tipo de alunos é feito devido a um pedido que lhe chega por parte “dos encarregados de educação, dos alunos ou ainda dos diretores de turma”. “Alguns estudantes têm conhecimento do gabinete e vêm por iniciativa própria”, outros são referenciados, acrescenta. Através do contacto com a psicóloga, a ajuda é diversificada, contudo a maioria dos pedidos diz respeito à melhoria dos resultados. Mas serão a distância e o tempo fatores propícios a maus resultados escolares? Não necessariamente, defende Isabel Bessa: “Tudo depende do perfil do aluno”. É certo que os que despendem muito tempo no trajeto casa-escola, escola-casa têm mais dificuldade. “Normalmente estão muito cansados e não têm tão bons níveis de atenção e concentração” como deverá ter um aluno que durma mais horas, uma vez que o repouso noturno é muito importante, explica. Mas existem no entanto formas de contornar a situação. As escolas possuem bibliotecas e salas de estudo onde estes podem, durante o tempo em que esperam pelos seus meios de transporte, adiantar trabalho. De acordo com a psicóloga educacional, nem todos conseguem estudar com barulho e preferem ambientes mais calmos e sossegados, o que por vezes se pode transformar num grande problema. No entanto, segundo Isabel Bessa, “cada caso é um caso” e esta situação não invalida o sucesso escolar e até um aproveitamento acima da média, como já comprovou em alguns casos. Para além do fator concentração, refere que a organização é também essencial, pois ser confrontado com horários complicados, diariamente, requer um planeamento muito rigoroso. Paula Oliveira é psicóloga e lida diariamente com jovens. Defende que o facto de se acordar mais cedo e de se fazer um percurso antes das aulas começarem pode até trazer benefícios. Uma hora e meia de viagem, na opinião desta técnica, faz com que o indivíduo já esteja desperto e com o cérebro pronto para receber informação. Apesar disso, a psicóloga reconhece que quanto à deslocação, “todo o tempo é perdido”, podendo no entanto ser transformado em útil caso seja efetuado num transporte mais cómodo. Apesar desta possibilidade, sublinha que, com 15 ou 16 anos “a capacidade de concentração num autocarro como muita confusão, não é a melhor”. “Três horas de viagem por dia é bastante”, considera Paula, mas se se analisar bem a questão, muitas pessoas usam esse ou mais tempo para fazer algo inútil. Este é um facto que é necessário, pois para que haja um equilíbrio todos os indivíduos necessitam de tempo para si e de tempo para não fazer nada. Cabe assim a estes adolescentes, de acordo com a psicóloga, utilizarem a viagem para o período inútil e o restante como útil. Se as psicólogas encontram dificuldades, mas também potencialidades, embora Vasco não considere as suas notas más, pensa que “conseguiria ter um aproveitamento melhor se estudasse mais perto de casa, pois teria mais tempo para descansar e se organizar”. “O aproveitamento no final de um período letivo não pode ser igual entre um aluno que chegue a casa às 17h00 e outro que chegue às 20h00”, refere a professora Inês Cravino. Tal como a docente, Cátia reconhece que em relação aos colegas “deslocados”, o facto de morar perto da escola é uma vantagem. Apesar da disparidade entre os horários escolares e dos transportes públicos lhe dificultarem o dia-a-dia, Vasco e os seus pais nunca contestaram à rodoviária a situação. Vivendo numa aldeia pequena, onde todos se conhecem, e convivendo com colegas de outras localidades na mesma situação, o estudante, tem conhecimento de reclamações que foram efetuadas sem sucesso. Com horários adequados ou não, Vasco, que é apenas um caso entre muitos, tem de se sujeitar a estes e apesar das condições não serem as melhores, só em transporte os pais gastam mensalmente cerca de 115 euros, dinheiro a que se juntam os gastos normais que a educação exige e da alimentação que tem de ser feita na escola. Uma outra alternativa que vários jovens tomam, mas que não é uma opção válida para Vasco e para os seus pais, é alugar um quarto na cidade. No entanto, Isabel Bessa, psicóloga educacional adverte que esta via “é um pouco precoce pois os mais novos hoje em dia são muito protegidos pelos pais”. Dependendo da maturidade de cada um, viver longe da família mas mais perto da escola pode ser uma forma de quebrar a dificuldade de viajar várias horas diariamente e de ainda assim manter bons níveis de concentração e organização. Deixando o presente e pensando no futuro, a psicóloga Paula Oliveira, prevê que alunos que se desloquem diariamente desenvolvam um conjunto de competências que lhes permita ultrapassar os obstáculos com que se deparam. Se o desafio for encarado de uma forma positiva, este só pode, a longo prazo, representar uma mais-valia, refere. Em princípio, afirma, “o adolescente está numa fase em que tem capacidades de arriscar”, o que lhe permite adquirir as chamadas soft skills, ou competências básicas tão apreciadas no mercado de trabalho. A par das dificuldades, e porque como diria o poeta, é o sonho que comanda a vida, os desejos continuam a existir. Cátia e Vasco pretendem seguir os estudos, ela na área do turismo, ele nas relações internacionais. Até lá é tudo uma questão de organização, é tudo uma questão de tempo. |
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