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Moisés Lemos Martins
Universidade do Minho


Signos de um tempo sem rocha, cabo ou cais

Dantes, a cultura era a verdade da Universidade. Hoje, quem é que pede cultura ao ensino e à investigação? Exige-se-lhes qualidade, e quer-se que toda a qualidade seja de utilidade. Ensino e ciência que não sejam úteis parecem definitivamente condenados. De um ponto de vista ético, é sem dúvida uma
alteração considerável.
Esta surpresa teve-a António Barreto há anos, quando deparou com um documento do CRUP intitulado "Guião para o Auto-estudo (avaliação horizontal)". Os índices da avaliação aí considerados eram bons, mas apenas para uma fábrica de salsichas: "aquele guião, de sete páginas, não tem uma só referência à investigação científica, às invenções, às patentes, às novidades teóricas, às publicações, às descobertas e ao pensamento. É tudo alunos, 'ratios', metros quadrados, listas
de pessoal, equipamentos, orçamentos, emprego, diplomas e aulas. Ciência? Nicles!".
Na sociedade da informação que é a nossa, a Universidade age como um qualquer meio de comunicação social. Como a televisão, por exemplo, que transforma a defensiva em dignidade, a intransigência em agressividade e o simulacro em inocência. Também para a imprensa houve um tempo em que a veracidade de uma notícia era todo o seu valor. Hoje, o chefe de redacção ou o director de um jornal já não exigem que uma informação seja verdadeira. Querem é que ela seja
interessante. Se não for interessante, não é útil. E se não tem utilidade, não vale a pena publicá-la.
Vivemos um tempo em que só parece justificável socialmente aquilo que é eficaz, aquilo que é instrumental, aquilo que numa palavra, serve os desígnios de uma razão pragmática. Toda a gente sofre hoje desta convicção generalizada de ter direito a tudo: ao respeito, à expressão, ao diploma, ao emprego, ao êxito social. E é à escola, designadamente à Universidade, que é cometida a tarefa de lutar esta luta, e assim garantir a realização deste sonho, o de uma promessa de sucesso, sendo todo o sucesso ganhar.
Para dar conta do seu comportamento no mercado, da sua eficácia, a Universidade entendeu mergulhar em intrincados processos de auto-avaliação interna e externa.
Aos cursos pergunta-lhes insistentemente pelo destino dos seus licenciados. Aos docentes obriga-os, de forma organizada e sistemática, a dar conta de um sem número de empecilhos académicos, que a supervisão pedagógica justifica. Aos investigadores impõe-lhes uma taxa de produção científica, aponta-lhes mesmo como objectivo a atingir a fixação de um ranking que obedeça ao número de citações a que os trabalhos científicos dão origem. Aos alunos pede-lhes o controlo do desempenho dos seus professores, não vão estes abrandarem no interesse pelo pedagogismo e pelo didactismo, em benefício da actividade crítica e científica.
Servindo o mercado como único senhor, obedecendo às exigências da competitividade, como se a razão liberal fosse hoje o verdadeiro tribunal que julga da qualidade académica, a Universidade descentra-se e passa a funcionar sobre eixos de sentido que não são os seus, fazendo da esquizofrenia o seu estado permanente.
O insucesso escolar deixou entretanto de ser do aluno e passou a ser da própria Universidade, que entende negar-se a si mesma. E a Universidade nega-se a si mesma ao organizar consultas regulares (semestrais, nuns casos, anuais,
noutros), para registar a opinião que os alunos têm dos seus professores e dos programas das disciplinas leccionadas. A Universidade nega-se a si mesma, quando por todo o lado e sempre quer é comunicar, quer é escutar, quer é pedagogia e
supervisão, esquecendo a sua obrigação de ensinar.
É verdade que a Universidade não serve já a mobilidade social, sendo muito limitado o seu contributo para a democratização do país; é verdade também que o
discurso científico é hoje um discurso entre outros, tendo deixado de poder erigir-se em tribunal da razão; é verdade ainda que a Universidade se mostra incapaz de responder à pressão crescente das exigências sociais (Boaventura S.
Santos).
Num tempo de escassez, sem rocha, cabo ou cais, a Universidade já dificilmente é essa outra linguagem, que desfaz as aparências e nos ilumina. Numa paisagem de
ruínas, onde deuses e homens perderam o esplendor, a Universidade é cada vez menos um exercício de memória e uma reserva de afectos. A Universidade tem dificuldade em figurar o sonho e a abertura do mundo. Perdida a centralidade, a Universidade viu crescer sobre si a pressão social. E, assarapantada, resigna-se a que os alunos deixem de ser alunos (com a obrigação de aprender) e passem a ser idolatrados como 'juventude'; assarapantada, aceita que a cultura e a investigação se rendam ao culto da tecnologia e do futuro enquanto tais; assarapantada, mobiliza-se, equivocadamente, para nos dar um exacto retrato de fábrica de salsichas. Ou seja, o ensino atola-se no pedagogismo, essa coisa mole sem 'corpo' real, sem tempo do 'outro', sem
exigência ética; a investigação deposita no mercado e na competição todas as esperanças de redenção, sucumbindo ao sistema; o serviço à comunidade é muitas vezes um mero pragmatismo, uma pressa indecorosa, um fazer sua a convicção generalizada de que temos direito a tudo e de que tudo tem um preço.
E, no entanto, a Universidade não pode ceder, a Universidade não pode resignar-se a que as políticas académicas se confinem a estratégias de gestão e as necessidades do crescimento se acomodem a respostas de carácter exclusivamente tecno-instrumental. É seu ofício ensinar a ver: "habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados"; é seu ofício ensinar a pensar, o que quer dizer, ensinar "uma técnica, um plano de estudos, uma vontade de mestria, - que o pensar deve ser aprendido como deve ser
aprendido o dançar, como uma espécie de dança..." (Nietzsche).





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