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Jorge Bacelar


Apelo aos pedagogos da futura escola médica com historinha pelo meio

A minha história é insignificante e dilui-se na infinidade de histórias que todos os utentes do Serviço Nacional de Saúde têm para contar. Algumas, infelizmente excepções à regra, são elogiosas para os médicos e restante pessoal. Mas a maioria, divergindo nas circunstâncias e nos cenários, coincidem no desprezo pelo sofrimento do outro - que, por acaso, até é a justificação do salário dele - na frieza, na falta de pontualidade, no tom autoritário com que prescreve tratamentos e determina a data da próxima consulta. Mas volto à minha insignificante história. Um acidente ridículo, como qualquer acidente que se preze. Um olho traumatizado por uma pancada violenta. Na urgência não se viu nada que justificasse incomodar o Senhor Doutor Oftalmologista, que estava de prevenção (está em casa, mas de serviço). Mas é chato tirar o Senhor Doutor do aconchego do lar - mesmo estando a facturar - só para ver um olho esborrachado. Assim, marcou-se consulta para o dia seguinte. O dia seguinte chegou, com dores, uma noite mal dormida, o susto de ficar com um olho a menos. Chegada a hora, entrei. Com um gesto, apontou uma maquineta. Deduzi que era para me sentar à frente da dita e apoiar o queixo numa estrutura metálica mesmo em frente a umas lentes e umas luzes - tudo muito tecnológico - e acertei na dedução, pois ele não me censurou. Limitou-se a sentar-se do outro lado da maquineta e espreitar pelas lentes para dentro dos meus olhos. E, para dar uma dimensão lúdica à coisa, começou a assobiar os Jingle Bells. Informo que faltavam uns dias para o Natal e, convenhamos, o ambiente era propício. Seria estranho se se pusesse a assobiar a Internacional ou O Bacalhau Quer Alho. Aí sim, eu era capaz de ficar ofendido. Agora, os Jingle Bells, tá bem. Findo o exame (calculo que era disso que se tratava) encheu-me o olho com uma pomada e mandou-me ler (com o olho avariado e besuntado) as letras de um daqueles quadros que os oftalmologistas têm nos consultórios. Aqui, a coisa ficou desagradável. Primeiro, o quadro era luminoso e estava desfocado; segundo, o gabinete estava muito iluminado, o que diminuía o já de si parco contraste entre as letras e o fundo; terceiro, o meu olho estava cheio de uma mixórdia translúcida, que resulta muito bem nos quadros do Constable - cheios da típica neblina britânica - mas que naquelas circunstâncias não ajudava grande coisa; e, em grand finale, perante a minha incapacidade em distinguir um P de um F, ou um U de um V, disparou a seguinte pergunta: já via assim mal, antes?. Esclareço que a minha acuidade visual é excelente: um dos meus passatempos favoritos é ler as letras pequeninas dos contratos das companhias de seguros, a um metro de distância - não estou a armar, é mesmo verdade... Para concluir, mandou-me para o corredor para a enfermeira me fazer um penso no olho. A sala de tratamentos estava arrumada e não valia a pena ir para lá por tão pouco. E marcou-me consulta para daí a dois meses. E então eu disse à minha mulher: agora vamos procurar um médico? Ele ouviu. E até hoje fiquei com a impressão que não gostou.

Pedagogos da futura escola médica da UBI. Pedagogos de todas as escolas médicas existentes ou a existir: por favor, ensinem os futuros médicos a ser gente! Não descurando as preocupações científicas, a procura da excelência no ensino e na investigação, façam o esforço de integrar na estrutura curricular algo como aquilo que no secundário é ensinado sob o título de educação cívica.
Convém que os estudantes, futuros médicos, deixem de vez a triste ideia de serem uma espécie de feiticeiros, xamãs iluminados nos mistérios do Índice Nacional Terapêutico e do CID-10, que do alto da sua arrogância místico-científica fazem o favor de nos atender nas consultas e nas urgências hospitalares. Façam com que os futuros Doutores não nos vejam como um mecanismo com insuficiências funcionais, mas como gente. Que quando os procuramos não é para contar anedotas ou ir beber um copo, mas porque estamos mal. E, tanto quanto me parece, o Juramento de Hipócrates ainda está em vigor.

Quanto ao meu pequeno drama: efectivamente encontrei um médico digno do título. E já consigo ler de novo as letrinhas dos contratos dos seguros. Obrigado por se preocuparem!






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